Intervenção na sessão solene comemorativa do 50º aniversário da O.V.A.R
Intervenção na sessão solene comemorativa do 50º aniversário da O.V.A.R.
Excelências
Estamos em dia de festa e de reflexão. Dia de festa pois a passagem de cinquenta anos de vida é sempre motivo de celebração. Dia de reflexão já que a vida da aniversariante tem sido dedicada a uma causa que continua a dar motivos de preocupação do mesmo tipo que esteve na base do seu nascimento: o sistema prisional e as suas consequências nas vítimas, nos reclusos e suas famílias. Como referimos na revista que hoje foi lançada (número especial da Escalada), o principal enfoque deve ser dirigido aos fundadores da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, pela sua capacidade de iniciativa, coragem e espírito vicentino que deram mostra ao assumirem a criação duma instituição para praticar o bem, o sentimento humanitário e o espírito de ajuda que estão na base da filosofia cristã que nos congrega. Ao assim procederem, corporizaram o legado de S. Vicente de Paulo e de Fraderic Ozanam de irmos ter com quem necessita de apoio, na perspetiva de minorar o sofrimento e, através da caridade, desenvolver as acções necessárias para tal, com amor e dedicação. Analisando as primeiras atas de reunião da O.V.A.R., de há cinquenta anos, constata-se a mesma necessidade de dinamizar a vivência cristã dentro das prisões, com a agravante do grande crescimento da população prisional e do alargamento da componente punitiva na vida em sociedade. Se os fundadores da O.V.A.R. ainda fossem vivos seria com indignação que assistiriam a situação actual nas prisões portuguesas, já que a situação de desumanização que se vive no seu interior é uma afronta aos valores cristãos de fraternidade e de paz. Aquando do recebimento dos galardões com que a O.V.A.R. foi distinguida, no último ano, tivemos ocasião de referir muitas das grandes questões que envolvem o sistema prisional nos dias de hoje. No último ano adicionaram-se três aspectos com relevância especial: a greve dos guardas prisionais (com implicações profundas no quotidiano dos reclusos e suas famílias, além do impedimento da prestação de assistência espiritual e religiosa), o aumento duma política restritiva por parte dos Tribunais de Execução de Penas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias e liberdade condicional) e o aumento do número de pessoas em cumprimento de penas e medidas na comunidade que já se situam em número superior a 30.000 (além das cerca de 13.000 que se encontram em cumprimento de penas restritivas da liberdade em estabelecimentos prisionais). As entidades oficiais com quem temos mantido contacto manifestaram sensibilidade e abertura para essas questões, mas não se tem sentido alteração significativa duma realidade que é chocante. A revista especial que hoje é lançada, contendo depoimentos de reclusos, ex-reclusos, familiares de reclusos, sacerdotes, benfeitores e de várias entidades é um testemunho dessa realidade que a O.V.A.R. tem vindo a denunciar. Aos vicentinos em particular, e à Igreja Católica em geral, cabe um papel relevante no combate a tal situação, dada a sua influência na sociedade. A sensibilização das comunidades para a implementação duma vivência cristã nas prisões tem de ser tarefa prioritária. Neste sentido, alertamos, uma vez mais, para a necessidade da criação dum secretariado diocesano da pastoral prisional, com o objectivo de dinamizar toda a diocese para uma contribuição forte de implementação dos valores cristãos nas prisões. Os exemplos seguintes, constantes da nossa intervenção na Audição Parlamentar na Assembleia da República, de julho último, que não esgotam as situações desumanas vividas nas prisões, podem-nos dar uma ideia do quanto há por fazer para que a vivência cristã se instale no sistema prisional. - É importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social. - É urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é conhecida. - Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado. - É necessária uma modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais pesadas. - Há que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e comunicação devem ser acessíveis aos reclusos, incluindo o uso alargado dos equipamentos (telemóveis e computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor Geral da DGRSP no jornal Público - 11/06/2019 – Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados nas celas). - Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos. - Tendo o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena. - É urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça , etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação existente. - As prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria. - Sendo Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais de direitos humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os produzem. - Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo da média da U.E.), pelo que reduzindo este tempo não precisamos de mais prisões nem de mais recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena, que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia contribuirá para este objectivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O poder político não tem de ter medo da reacção dos portugueses a este respeito e uma amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública. - Há que considerar a aplicação das Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças inocentes. - Há que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos para os condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso de reclusos reivindicativos dos seus direitos. - Os tribunais de execução de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a presença física dos reclusos e seus advogados em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional. - Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais. - Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar. - A assistência espiritual e religiosa é feita com grandes limitações de tempo de contacto com os reclusos, agravada com a sua impossibilidade no caso das greves dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte dos serviços mínimos). - A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário. - Os serviços de saúde são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário. - É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da reincidência. - A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas por entidades com fins lucrativos, é inferior a € 4,00.
E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
Como corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.” No ano de 1969 em que a O.V.A.R. foi fundada a população prisional era de cerca de 5.000 pessoas. Isto numa altura em que havia presos políticos e limitações à liberdade de expressão e associação. O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado em que a prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema “Por um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade, igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros, assentes nos pilares do perdão e misericórdia. A melhor forma de homenagearmos os fundadores da O.V.A.R. é empenharmo-nos no trabalho de continuidade por eles iniciado, valorizando o seu legado na linha da ação de S. Vicente de Paulo e Frederic Ozanam. É esse o compromisso que os atuais vicentinos e vicentinas da O.V.A.R. assumem convictamente.
Muito obrigado
Manuel Hipólito Almeida dos Santos Presidente da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos Sociedade de S, Vicente de Paulo – Conselho Central do Porto 27/11/2019