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Homilia de D. Joaquim Mendes

FESTA DE SANTA CRUZ

IV PEREGRINAÇÃO DA PASTORAL PENITENCIÁRIA A FÁTIMA

14 setembro de 2019

1.Nesta celebração está presente um grupo, não muito numeroso, mas significativo, que pelo IV ano peregrina a Fátima, representando e dando voz, aos reclusos e reclusas, que privados de liberdade, não podem aqui vir, para partilhar com a Mãe as suas vidas, os seus sentimentos, as suas angústias e esperanças, o seu presente e o seu futuro.

É a Peregrinação Nacional da Pastoral Penitenciária, um organismo da Conferência Episcopal Portuguesa, que procura encarnar e testemunhar a solicitude de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Igreja pelos reclusos e reclusas, bem por aqueles que os acompanham.

Nesta peregrinação queremos fazer presente a Nossa Senhora os 11.944 reclusos, homens e mulheres, distribuídos pelos 49 estabelecimentos prisionais do país, de grau elevado e de grau médio.

Queremos confiá-los à sua solicitude materna, pedindo-lhe que os abençoe, acompanhe, sustente e encoraje no caminho difícil e tantas vezes doloroso do cumprimento da pena.

Queremos também rezar pelas suas famílias, afetadas pela sua situação que é causa de sofrimento, e rezar também pelas vítimas dos seus crimes, para que Nossa Senhora os ajude a alcançar a graça do perdão e da reconciliação.

E também queremos rezar por todos os que cuidam dos reclusos e os acompanham no dia a dia, para que o façam com humanismo e respeito pela sua dignidade, ajudando-os numa verdadeira recuperação.

2. O Papa Francisco, na homilia da Missa do Jubileu dos Reclusos (06 de novembro de 2016), disse: “Cada vez que entro numa cadeia pergunto-me: porquê eles e não eu? Todos podemos errar: apontar o dedo contra alguém que errou não pode tornar-se um alibi para esconder as próprias contradições”.

Estou certo de que Nossa Senhora olha com compaixão e misericórdia os presos e, como qualquer boa mãe, sofre com eles e por eles, porque são seus filhos.

Também Jesus, seu Filho se identifica com eles: “Estive na prisão e fostes ter comigo” (Mt 25, 36).

E também nós nos devemos identificar como seus irmãos, porque eles são filhos e filhas de Deus e de Nossa Senhora como nós. Amados e perdoados por Deus como nós.

Nossa Senhora convida-nos a olhá-los como ela os olha, a amá-los como ela os ama, e a manifestar-lhes a nossa proximidade e solidariedade, acompanhando-os no caminho da sua reabilitação e inserção, não tendo medo de os receber e integrar plenamente na sociedade.

No sistema prisional português tem vindo a crescer o número de reclusos presos por vigilância eletrónica. Em 2018 eram 1.139 e atualmente são 1.208.

As nossas comunidades cristãs, paróquias e dioceses não podem ignorar a situação destes reclusos e dos outros que estão nos estabelecimentos prisionais, assim como as suas famílias.

Não podemos ignorar nem esconder atrás do biombo estas «periferias» humanas e existenciais, silenciosas, marcadas pela humilhação, pela vergonha, pelo sofrimento, pela exclusão e marginalização social.

Não podemos ignorar realidade das prisões e a situação de tantos reclusos abandonados pelas suas famílias, ou longe delas, sem visitas, sem recursos, por vezes, privados de bens de primeira necessidade e de apoio jurídico e social.

3. Celebramos hoje a Festa da Santa Cruz.

A cruz de Jesus ensina-nos que na vida existe o fracasso e a vitória e que os momentos maus da nossa vida podem ser iluminados pela cruz, sinal da vitória de Deus sobre o mal e sobre o pecado.

Na cruz fracassa tudo aquilo que Jesus havia realizado na sua vida e acaba toda a esperança daqueles que o seguiam.

O sinal cristão da cruz é sinal de derrota, mas também sinal de vitória.

A cruz é a síntese perfeita da divindade e da humanidade, onde se entrelaça a miséria e a glória, a morte a vida, o homem e Deus.

Jesus, no diálogo com Nicodemos, que escutamos no Evangelho, sublinha esta relação entre o céu e a terra, entre o divino e o humano que está presente de forma plena na cruz.

Jesus assumiu a nossa natureza humana, experimentou o sofrimento, a humilhação e a morte, elevou-se na cruz, para iluminar os momentos difíceis da nossa vida, pagando por nós.

Por isso, não tenhamos medo de contemplar a cruz como derrota e fracasso.

Olhemos para ela, sobretudo nos momentos difíceis da nossa vida, em que tudo se desmorona; contemplemo-la nos momentos de obscuridade e de vazio, onde não se vislumbra um raio de esperança, onde tudo é escuridão.

Nos contornos da cruz vislumbraremos a esperança de um futuro novo, de uma nova vida, alicerçada no amor redentor de Cristo, vencedor do pecado, do mal e da morte.

Fixemos o nosso olhar de crentes na cruz, raiz da nossa salvação e da vida divina a que somos chamados.

4. A leitura do Livro dos Números narra um momento em que o povo israelita não suportou o caminho: estavam cansados, faltava a água e comiam apenas o «maná», um alimento prodigioso, dado por Deus, mas que, no momento de crise, lhes parece demasiado pouco. Então lamentam-se e protestam contra Deus e contra Moisés: «Porque nos fizestes sair do Egipto». Sentem a tentação de voltar para trás, de abandonar o caminho.

Isto faz-nos pensar em tantas situações em que é difícil suportar o caminho, em que a vida diária se torna pesada.

Isto faz-nos pensar no caminho da reclusão para a liberdade dos reclusos, em que a vida se torna monótona, pesada, muitas vezes difícil de suportar, em que surge o cansaço, a murmuração e a revolta.

Naquele momento de extravio do povo de Israel chegam as serpentes venenosas que mordem as pessoas e muitas morrem.

Este facto provoca o arrependimento do povo, que pede perdão a Moisés, suplicando-lhe que reze ao Senhor para afastar as serpentes. Moisés pede ao Senhor, que lhe dá o remédio: uma serpente de bronze, pendurada num poste. Quem olhar para ela fica curado do veneno mortal das serpentes.

Deus não elimina as serpentes, mas oferece um «antídoto»: através daquela serpente de bronze, feita por Moisés, Deus transmite a sua força que cura, ou seja, a sua misericórdia, mais forte que o veneno tentador.

Como ouvimos no Evangelho, Jesus identificou-se com este símbolo: “Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do homem será elevado, para que todo aquele que acredita tenha nele a vida eterna”.

Na cruz, Deus oferece o remédio para todos aqueles que não suportam o caminho e acabam mordidos pela tentação do desânimo, do retrocesso, do abandono, do mal e do pecado.

Também a eles, Deus Pai entrega o seu Filho, não para condenar, mas para salvar: se se entregarem a Jesus, Ele cura-os com o amor misericordioso que jorra da sua cruz, com a força duma graça que regenera e põe de novo a caminhar.

A cura do mal e do pecado que morde a nossa consciência, a serpente que anda dentro de nós, dissimulada nas pregas do nosso coração, o veneno que transporta e nos conduz à morte, encontram cura e libertação na contemplação da cruz, em Cristo crucificado.

5. A cruz é a imagem do nosso pecado, do pecado que está em nós, mas é também a imagem infinita do amor de Deus que cura e salva.

Olhemos para a cruz, contemplemo-la, ela é sinal de derrota, mas também de vitória. Nela encontramos a força e a coragem para ir em frente.

Em Cristo crucificado e ressuscitado encontramos consolação, fortaleza e esperança para prosseguir o caminho.

A cruz ensina-nos que na vida há o fracasso e a vitória; ensina-nos a aceitar com paciência os nossos fracassos e as derrotas, a reconhecer com humildade os nossos pecados, a pedir perdão, a acreditar e confiar na sua força redentora.

A única salvação está em Cristo crucificado, porque só Ele, tal como a serpente de bronze significava, foi capaz de retirar o veneno do pecado, curando-nos na cruz.

Que a cruz nos acompanhe na missão pastoral junto dos nossos irmãos reclusos. Abracemo-la e ajudemo-los também a eles a abraçá-la, para nela encontrarem luz e força para o seu caminho de reabilitação, para que nela encontrem a verdadeira liberdade e a paz.

† Joaquim Mendes,

Bispo Auxiliar de Lisboa

e vogal da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana

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