Audição pública sobre o sistema prisional - Assembleia da República
Audição Pública – Assembleia da República
Senhoras deputadas e senhores deputados
Agradecendo o convite para esta audição parlamentar, felicito V. Exªs. pela iniciativa, trazendo para a ordem do dia um tema para o qual a sociedade olha com incómodo.
A O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, mantém, na colaboração dos seus membros com os reclusos do sistema prisional, o seu cariz vicentino de ajuda concreta imediata aos mais pobres e necessitados, complementada com a abertura de condições para a sua saída da condição de pobreza e exclusão social, não nos limitando ao apoio, ainda que positivo, que não ambiciona alterar a situação vigente. A desumanidade a as violações de direitos humanos vividas nas prisões portuguesas não se compadecem, apenas, com acções de remedeio. É necessária a ajuda mas tem de se alterar a situação que a motiva.
Tal como temos vindo a alertar, desde há alguns anos, o sistema prisional português tem características evidentes de desumanidade e incongruência, violadoras dos referenciais jurídicos nacionais e internacionais, situação esta reconhecida por entidades como a Provedoria de Justiça e os Comités das Nações Unidas e do Conselho da Europa para as questões da tortura e dos direitos humanos. O exposto a seguir não esgota a panóplia daquilo que é necessário mudar no sistema prisional, já que o modelo civilizacional construído nos finais do século XX aponta no sentido da abolição das prisões, já que são instituições retrógradas, medievais, desumanas e violentas.
Façamos um périplo pelo interior das prisões, considerando que o retrato difere de prisão para prisão e do ambiente que nelas vigora.
- É importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social.
- É urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é conhecida.
- Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado.
- É necessária uma modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais pesadas.
- Há que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e comunicação devem ser acessíveis aos reclusos, incluindo o uso alargado dos equipamentos (telemóveis e computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor Geral da DGRSP no jornal Pùblico - 11/06/2019 – Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados nas celas).
- Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos.
- Tendo o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena.
- É urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça , etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação existente.
- As prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria.
- Sendo Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais de direitos humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os produzem.
- Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo da média da U.E.), pelo que reduzindo este tempo não precisamos de mais prisões nem de mais recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena, que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia contribuirá para este objectivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O poder político não tem de ter medo da reacção dos portugueses a este respeito e uma amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública.
- Há que considerar a aplicação das Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para
mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças inocentes.
- Há que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos para os condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso de reclusos reivindicativos dos seus direitos.
- Os tribunais de execução de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a presença física dos reclusos e seus advogados em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional.
- Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais.
- Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar.
- A assistência espiritual e religiosa é feita com grandes limitações de tempo de contacto com os reclusos, agravada com a sua impossibilidade no caso das greves dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte dos serviços mínimos).
- A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- Os serviços de saúde são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da reincidência.
- A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas por entidades com fins lucrativos, é inferior a € 4,00.
Em acréscimo a estas questões, importa ter em conta o que temos vindo a declarar nas sucessivas intervenções em que nos envolvemos.
Em Abril último fomos homenageados com o prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade” (Fafe - 04/04/2019) pelo nosso contributo para a humanização do sistema prisional, onde proferimos a seguinte declaração:
(…)
“Permitam-me um prólogo à intervenção protocolar nesta cerimónia de homenagem à O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, promovida pela Câmara Municipal de Fafe no “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade – Terra Justa” do ano de 2019.
Já que estamos em momento de homenagens, quero homenagear e solidarizar-me com todas as vítimas de atos anti-sociais, e homenagear e solidarizar-me, também, com alguns perpetradores de atos socialmente censuráveis de quem tenho tido o privilégio de contactar, na prossecução duma sociedade sem crimes, sem vítimas e sem reclusos, uma sociedade de paz e liberdade.
- Recluso A – Preso há 34 anos, considerado inimputável, manifesta a sua revolta e indignação pela renovação, de 2 em 2 anos, da sua reclusão no estabelecimento prisional. Tem consciência da injustiça que lhe está a ser feita. Mantenho com ele uma relação de grande amizade.
- Recluso B –Um jovem, de 32 anos, depois de cumprir uma pena de 6 anos, conseguiu arranjar trabalho como condutor dum camião de recolha de lixo e como distribuidor de pizzas. Encontramo-nos regularmente (quer enquanto se encontrava na prisão, quer agora em liberdade). Diz-me: “Aquilo, lá dentro, é muito pior do que se pode imaginar.”
- Recluso C – Encontra-se preso pela 3ª vez. Quando o encontrei a iniciar o cumprimento da 3ª pena, perguntei-lhe: “ Então você aqui outra vez? Não me tinha dito que nunca mais voltaria para a prisão?” Respondeu-me: “Quando cheguei a casa depois de libertado a minha mãe disse-me: rapaz, vê lá se arranjas trabalho pois nós somos pobres e precisamos da tua ajuda. Visitámos-te pouco na prisão pois não tínhamos dinheiro para lá ir. No dia seguinte fui a diferentes lugares oferecendo-me para trabalhar e todos me disseram para deixar os meus contactos, que logo que aparecesse alguma coisa me telefonariam. No 2º dia repetiu-se o que se passou no dia anterior.” Então o recluso perguntou-me: “O senhor acha que eu tinha coragem de voltar para casa ao 3º dia sem dinheiro nem trabalho?”. Foi apanhado e preso uns dias depois.
- Recluso D – Depois de 20 anos de vida atribulada, conseguiu encontrar um rumo para o seu futuro, concluindo a licenciatura em engenharia mecânica, enquanto está preso, estando agora a fazer o estágio curricular e o mestrado, devendo sair em liberdade no final do corrente ano, apesar das grandes limitações a que está sujeito para este seu percurso académico, sem poder utilizar equipamento de escrita e de acesso às TIC .
- Recluso E (toxicodependente) – Como não dispunha de rendimentos para usufruir de serviços públicos essenciais, fez uma ligação clandestina à rede pública de água. Apanhado neste crime, foi condenado a pagar € 1.800 de multa, convertíveis em 300 dias de prisão. Como não tinha os € 1.800 para pagar a multa, está a cumprir os 300 dias de prisão que vão custar ao Estado cerca de € 15.000, pois um recluso custa, em média, cerca de € 50 por dia. E, entretanto, como estão a viver a esposa e o filho? Que futuro se prevê para a família?
- Recluso F – Encontrei uma senhora a sair da visita semanal de sábado à prisão, com ar triste, abatido e de mágoa evidente. Perguntei-lhe se necessitava de ajuda, respondendo-me que estava preocupada com o seu filho a cumprir pena, a que se seguiu uma conversa amiga. Relatou-me que o seu filho tem tido problemas psiquiátricos desde criança, com manifestações de agressividade para com ela e para com o pai, que iam aguentando tudo pois sentiam como seu dever nunca abandonarem o filho, confiados que, um dia, ele recuperaria a razão, apesar de serem pobres e sem meios para grandes tratamentos. Na última vez o filho agrediu-os e obrigou-os a sair de casa, o que os forçou a chamar a polícia com o objectivo de lhes permitir o regresso a casa e de provocar o tratamento do filho num estabelecimento de saúde adequado. A polícia deteve o jovem, acusando-o de violência doméstica, apesar dos pais declararem não querer apresentar queixa mas, apenas, que o seu filho fosse tratado. No entanto, como a violência doméstica é crime público, o jovem foi julgado e condenado a quatro anos, sendo considerado inimputável e a pena a ser cumprida em estabelecimento psiquiátrico prisional. E, agora, lá vão os pais, todas as semanas, visitar o seu querido filho, com a consciência pesada pelo facto do seu filho estar na prisão por culpa deles, já que nunca deviam ter chamado a polícia. Pensavam que ele seria levado para tratamento hospitalar mas nunca para a prisão. Carregam esta cruz com tristeza e mágoa mas com amor incondicional pelo seu filho.
Recluso G – Encontra-se a cumprir penas sucessivas que lhe foram aplicadas num total de 51 anos e 8 meses (após reclamações do recluso foram reduzidas para um total de 38 anos e 2 meses). Está preso há 17 anos, sem ter tido qualquer licença jurisdicional (precárias), sempre passados dentro da prisão. Muitas entidades conhecedoras da situação consideram que esta situação, que pode conduzir à prisão perpétua, é inaceitável e viola o disposto na Constituição da República Portuguesa. Este caso já tem sido tratado por alguns órgãos de comunicação social, tendo tido um programa específico na SIC, na rubrica “Vidas Suspensas”. O actual Diretor Geral da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa que solucione a situação dentro do quadro constitucional e do Código Penal que prevê a pena máxima de 25 anos. Aguarda-se tal proposta e, enquanto isso não acontece, o recluso continua sem saber se algum dia sairá da prisão.
A maioria destes reclusos estão presos, ou passaram pelas prisões, devido a problemas com drogas, problemática esta que está na origem de mais de 80% dos presos em Portugal.
Agradecendo a consideração pela permissão deste prólogo, não posso deixar de iniciar a minha intervenção protocolar sem agradecer, sensibilizado, a escolha da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (Obra Especial do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo) para ser homenageada e felicitar vivamente a organização deste evento “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, Terra Justa”, colocando Fafe como exemplo na divulgação dos mais elevados direitos humanos, assim como por trazer para a consciência colectiva a necessidade de pensar sobre valores base da convivência humana em clima fraterno e solidário, procurando alertar, provocar e envolver as pessoas a refletir sobre a importância das causas e valores da humanidade, fazendo jus à muito afamada “Justiça de Fafe”. E aqui surgem, já, duas questões: Que tempo é este em que vivemos quando causas e valores da humanidade como a solidariedade, a fraternidade, a caridade e o amor ao próximo, continuam a ser valores merecedores de homenagem e não atributos correntes na prática rotineira de todos os seres humanos? Que tipo de sociedade é esta em que vivemos que substitui esses valores pelo hedonismo, egoísmo, vingança e ódio?
No passado dia 10 de Dezembro, aquando da atribuição do prémio atribuído pela Assembleia da República “Direitos Humanos 2018”, tive ocasião de referenciar, sucintamente, os atropelos à dignidade humana vividos nas prisões portuguesas. Permitam-me que os repita aqui, já que a gravidade de que se revestem impõe que os tenhamos presentes, tendo em conta de que as situações referidas diferem dum estabelecimento prisional para outro estabelecimento prisional. (…)
E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
Ainda, recentemente, em artigo publicado no Jornal Expresso, pelo psicólogo Mauro Paulino, foi divulgado que “a prevalência de diagnósticos psicopatológicos entre reclusos é quatro vezes superior à da população em geral, com destaque para perturbações da personalidade, designadamente anti-social, estado-limite, paranóide e narcísica. (…) Os reclusos tendem a desenvolver a denominada máscara prisional, quer a nível emocional, quer a nível comportamental, o que pode originar uma instabilidade emocional crónica e debilitante nas interações interpessoais com reflexo na intervenção a realizar. A vivência destes indivíduos é, por vezes, caracterizada por vários percursos criminais, com associação a culturas e normas morais desviantes, que servem de base às relações de poder e de interesses instituídas. Tomem-se como exemplos os diversos negócios que se desenvolvem, uma vez que todos os produtos servem para a troca, para exercer controlo, como sucede com o tráfico de droga ou a compra de tecnologias de comunicação, que podem, inclusive, servir de meio para que o recluso continue a intimidar as suas vítimas no exterior. A sobrelotação é outra variável a considerar, podendo originar uma perda de controlo por parte da administração prisional e o aumento do perigo de vida para o staff e reclusos. Ao nível dos serviços clínicos, o excesso de pessoas por técnico representa uma real limitação de atuação terapêutica, sem a possibilidade da implementação de um trabalho psicoterapêutico mais efetivo, dado o rácio técnico/recluso. Neste quadro surge, não raras vezes, a frustração entre os reclusos por terem inevitavelmente menos possibilidade de acesso a outros serviços, incluindo as ocupações (escola, trabalho), o que contribui para o aumento de competição e sintomatologia diversa. Ainda que os serviços de vigilância procurem supervisionar a violência, a verdade é que aqueles também denunciam a falta de recursos humanos no exercício de funções e que as agressões existem e provocam medo, podendo ocorrer a construção artesanal de instrumentos e armas que podem provocar ferimentos graves e mesmo a morte. A isto associa-se a complexidade dos negócios ilícitos já citados, os roubos, a própria monotonia e a manutenção de relações de poder, tendo-se aqui em consideração variáveis como o número de anos preso, o tempo que passou em instituições penais, o tipo de crime e a idade da primeira detenção.”
O que se passa hoje nas prisões portuguesas, como instituições retrógradas, medonhas, arcaicas, medievais e violentas, é o reflexo da sociedade em que vivemos. Já começa a ser lugar comum caracterizar o actual modelo de sociedade como alienada, violenta, egoísta e vingativa, existindo pequenas bolsas de resistentes que continuam a querer implementar o modelo humanista construído na segunda metade do século passado, de que o Papa Francisco tem sido exemplo destacado. Assiste-se nas relações sociais, em muitas famílias e em muitas escolas, à prática dum clima de repressão, ódio, intolerância, escravatura e medo. Como exemplo pode-se atentar nos indicadores divulgados, anualmente, pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, que nos informam estarem a ser acompanhadas, nestas comissões, cerca de 70.000 crianças e jovens por ano. E a sociedade assiste, impávida e serena, a esta catástrofe! O futuro das prisões está garantido pois muitas destas crianças e jovens têm o seu destino apontado desde muito cedo, havendo necessidade urgente de, na área da justiça juvenil, se repensar o processo tutelar educativo, o funcionamento dos centros educativos e o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que quase parece um Código de Penas para crianças estudantes.
Por outro lado, a dimensão escandalosa da pobreza em Portugal, resultante dos baixos salários e pensões, assim como da precariedade crescente, constitui um grande contributo para o número elevado da população prisional, já que a esmagadora maioria dos reclusos são pobres, a quem a tentação do crime é mais difícil de resistir, pois, como disse o poeta Millôr Fernandes “Ser pobre não é crime, mas ajuda muito a chegar lá”. A pobreza existente em Portugal, país da U.E., espaço que se diz desenvolvido, é um escândalo e gerador da prática de atos anti-sociais.
Como corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.”
Com este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo, simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi, e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao combate às drogas, desde as polícias às prisões e às instituições cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento, possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização.
Excelentíssimas entidades presentes
Minhas senhoras e meus senhores
Celebrou-se em 10 de Dezembro o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No próximo dia 5 de Maio o Conselho da Europa também celebrará igual aniversário. Há 70 anos os nossos pais e os nossos avós definiram os grandes valores civilizacionais que deveriam estar presentes na vida de todos nós, tendo os nossos Governos assinado os tratados e convenções que nos obrigam a respeitar esses valores. Setenta anos passados continuamos a assistir ao desrespeito desse legado, pelo que deveríamos sentir vergonha pela nossa incapacidade e indiferença. É tempo de todos nós nos empenharmos em praticar, quotidianamente, o reconhecimento da dignidade estabelecido no artº 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando o direito à liberdade como valor absoluto.
Este evento dedicado às grandes causas e valores da humanidade tem importância relevante numa nova dinâmica para se inverter o caminho de retrocesso civilizacional que temos vindo a viver, pelo que reforço as felicitações pela sua realização. Temos de reconstruir as bandeiras que simbolizam a humanização duma sociedade com mais fraternidade e não maior egoísmo, com mais concórdia e não mais conflitos, com mais igualdade e não maior desigualdade, com amor e não com ódio, com mais humanidade e não maior desumanidade.
Tenho consciência de que o ser humano é imperfeito e, como tal, propenso a cometer erros, mas sem que tal tenha que ter como consequência a perda da liberdade. A prevenção da prática de atos anti-sociais (prevenção do crime) tem de ocupar lugar de grande importância na formação do carácter das pessoas, seja nas escolas, nas famílias, nos órgãos de comunicação social e na vida em sociedade.
Ainda, há poucos anos, passou nas salas de cinema o filme “I Daniel Blake” que retrata alguns aspectos da sociedade desumana em que estamos inseridos. Recomendo vivamente o seu visionamento a quem ainda não o fez. Eu não quero fazer parte de quem não vê, de quem não ouve, de quem não lê, e não quero ignorar, como nos exortou a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen, de quem comemoramos o centésimo aniversário do seu nascimento. Sendo eu um defensor da liberdade e, como tal, da abolição das prisões, quero ter a esperança de que o caminho para tal se concretize fruto da pressão de iniciativas como esta.
(…)
O objectivo da nossa missão de voluntariado é bem claro: semear a paz e a esperança, permitindo o sonho dum mundo melhor que, infelizmente, está cada vez mais arredado do modelo de sociedade que se está a implementar neste início do século XXI. Atentemos na afirmação de Alexandre O’Neil: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. Será um sonho não querermos os reclusos fechados, nos vários sentidos, mas abertos e disponíveis para com todos nos caminhos do mundo, abertos e disponíveis para com tudo que os faça crescer entre os povos, com justiça, entreajuda fraterna e a verdadeira paz? Neste sentido, continuarei a pedir a todos os que me rodeiam para reflectirem no lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, extraída do evangelho segundo S. João: “ Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.
O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado em que a prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema “Por um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade, igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros.
Desejamos que desta audição parlamentar possam sair fortes contributos para uma nova visão do sistema prisional em Portugal, substituindo o castigo, o ódio e a vingança pela prevenção dos atos anti-sociais e pela justiça restaurativa, com tradução em medidas concretas, permitindo que o Estado de Direito viva nas prisões, enquanto não são abolidas, e sejam respeitados os Direitos Humanos, de cujos referenciais jurídicos Portugal é Estado-parte.
Muito obrigado
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
09/07/2019