Entrevista ao "Referencial" - Revista da Associação 25 de Abril - Out/Dez 2018
O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República 2018
Entrevista com o presidente Manuel Hipólito Almeida dos Santos
- Qual o significado que tem para a O.V.A.R. a atribuição do Prémio Direitos Humanos 2018 da Assembleia da República?
É, simultaneamente, um estímulo para a continuidade do nosso voluntariado, assim como o reconhecimento da necessidade de humanização do sistema prisional.
- Enquanto presidente da O.V.A.R. e considerando a ação direta junto dos estabelecimentos prisionais implantados na área de jurisdição da diocese do Porto, considera que aí se cumprem as normas e respeito pelos direitos humanos?
Infelizmente, constatamos que, duma forma geral, os direitos humanos são fortemente desrespeitados nos estabelecimentos prisionais, ainda que haja diferenças significativas entre todos eles. Tal é confirmado pelas instituições nacionais e internacionais que têm por objectivo a promoção do respeito pelos direitos humanos, como, por exemplo, os Comités especializados sobre a tortura do Conselho da Europa e das Nações Unidas e o Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura sediado na Provedoria de Justiça, ainda que esta estrutura tenha um funcionamento a carecer de revisão.
- O que há a fazer para que os direitos humanos sejam, de facto, respeitados nas prisões em Portugal?
Fundamentalmente, respeitar os normativos jurídicos relativos ao sistema prisional, tais como: Direitos Humanos e Aplicação da Lei - ONU; Direitos Humanos e Prisões - ONU; Regras Penitenciárias Europeias - Conselho da Europa; Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos - ONU; Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos - ONU; Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade - ONU; Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas à Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes - ONU; Convenção contra Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes - ONU; Conjunto de Princípios para a Protecção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão - ONU; Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes - Conselho da Europa, etc… . Bastaria respeitar as normas jurídicas a que Portugal está obrigado, por ser Estado-Parte nos Tratados e Convenções sobre direitos humanos, para se verificar uma mudança profunda no quotidiano das prisões.
- A politica de reinserção social presume-se seja globalmente direcionada à população prisional. Quando vemos só a floresta, pode acontecer que não descortinemos à arvore. O que importa apurar é se a política de reinserção social contempla a individualidade de cada recluso, se está, ou não, disponível para a análises individuais fazer corresponder respostas específicas adequadas à realidade de cada um, ao nível individual do recluso tendo em vista um projeto de reinserção social?
Apesar de cada recluso ter o seu plano individual, a dinâmica de reinserção social nas prisões é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs.
- Ao nível dos filhos e das famílias, não apenas nos direitos que lhe devem ser reconhecidos, mas na ação que lhes cabe e devem desempenhar no apoio afetivo e social ao recluso tendo em vista o projeto harmonioso de desenvolvimento pessoal e humano?
O apoio familiar é fundamental para uma equilibrada permanência na prisão e para a criação de condições tendo em vista o regresso em liberdade à sociedade em condições de boa reintegração. Infelizmente, nem sempre tal acontece, pois são frequentes os casos de ruturas familiares com a prisão de um dos seus membros, estando essa ausência de apoio familiar na origem do elevado grau de reincidência na prática de crimes e consequente retorno à prisão. As limitações às comunicações telefónicas, e visitas pessoais, agravam as dificuldades de reinserção social e a manutenção de laços familiares.
- Na edição de “O Referencial” n.º 123, outubro/dezembro de 2016, publicou nas págs. 112-119 o artigo sob o título “Panorama da Realidade Prisional”. Aí remetia para a reflexão das I Jornadas de Reflexão sobre o Sistema Prisional, realizadas há dez anos, a declarações proferidas e intenções declaradas; aí aludiu, também, ao Relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, 2004, presidida pelo Prof. Freitas do Amaral, reconhecendo-se, então, “a evidência do fracasso do modelo em que está assente o sistema prisional em Portugal”. Daí para cá a situação alterou-se?
As modificações verificadas no sistema prisional, nos últimos anos, não foram suficientes para alterar muitos dos aspetos negativos que temos vindo a denunciar e que foram a razão da criação, há cerca de 15 anos, da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional. Tal como temos referido, em intervenções públicas que temos proferido, continua a assistir-se ao desrespeito do espírito da Constituição da República Portuguesa e do Código Penal, com a admissão de que o tempo consecutivo de permanência na prisão exceda 25 anos, nos casos das penas sucessivas e das medidas de segurança, configurando a prisão perpétua constitucionalmente proibida. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da média da U.E.). Continua a retenção indevida do dinheiro dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a fragilidade do apoio judiciário, situação agravada com a impossibilidade do direito à própria defesa desrespeitando o artº 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (este desrespeito tem sido objecto de chamada de atenção pelas Nações Unidas), sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação. Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência. Por outro lado, o passo positivo, dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia não punitiva para esta problemática das drogas e sua produção e comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente a sua produção e comercialização e dinamizando uma política de sensibilização para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as drogas), sendo as drogas, juntamente com a pobreza, autênticas chagas e as principais responsáveis no abrir do caminho para as prisões. Há uma aceitação acrítica sobre a vivência de bebés no interior das prisões acompanhando o cumprimento de penas de suas mães. E poderia continuar a acrescentar muitas outras situações que são um atropelo à Convenção Contra a Tortura e Outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes e a outros referenciais de direitos humanos. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
- O Governo, através da Direcção Geral dos Serviços Prisionais e de Reinserção Social desenvolve ou não uma política ativa e assertiva tendo em vista a promoção social dos reclusos, nomeadamente, através de programas de ocupação seja pelo trabalho, estudo ou outros meios?
O trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo. A alimentação e os serviços de saúde são manifestamente pobres e insuficientes. A aposta numa dinâmica da educação ressente-se da falta de meios, quer financeiros, quer de recursos humanos, carências estas extensivas a muitas outras áreas das prisões.
- Quais os resultados obtidos? Entre a comunidade de reclusos estuda-se e trabalha-se mais?
Os resultados não são entusiasmantes. As estatísticas publicadas pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais não nos mostram progressos significativos, confirmando a nossa percepção, resultante do contacto direto com os reclusos dos estabelecimentos prisionais em que exercemos o nosso voluntariado, de carência de possibilidades de trabalho e de estudo.
- Na discussão do orçamento de Estado para 2019 para as prisões, fala-se em reforço do sistema nacional de vigilância eletrónica além de uma regulamentação e reorganização do sistema de execução de penas dos inimputáveis, por anomalia psíquica, o que passará por transferências para unidades de saúde mental não prisionais, em conformidade com o Plano Nacional de Saúde Mental. Como tem acompanhado esta discussão? Está tranquilo com as dotações previstas para as prisões? Designadamente ao nível da manutenção das instalações e do fornecimento da alimentação, tais objetivos respeitam os direitos humanos dos reclusos?
Parecem-me objectivos meritórios de medidas que já se encontram em implementação, sendo, parte deles, uma resposta às observações constantes dos relatórios das visitas do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa, o que tem levado à diminuição da população prisional, e, neste sentido, as declarações dos responsáveis apontam na tomada de medidas para a continuação dessa diminuição. A substituição do cumprimento de penas de prisão em dias livres por permanência na habitação com vigilância electrónica é uma dessas medidas. Temo, no entanto, que os constrangimentos financeiros impeçam a sua rápida execução, pois o muito que há a fazer com o reforço de recursos humanos, materiais e de melhoria de instalações, exige uma dotação orçamental muito para além do anunciado. Os cuidados de saúde, o apoio psiquiátrico e psicológico, a alimentação, etc…, não se compadecem com a subcontratação ao mais baixo preço, com o trabalho precário e com a prestação de serviços por tarefeiros de empresas de trabalho temporário, práticas estas que se têm revelado desadequadas ao sistema prisional, pelo que continuaremos a observar o desrespeito pelos direitos humanos constantes dos referenciais atrás enunciados. O próprio Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Dr. Celso Manata, quando questionado sobre a situação nas prisões, lembrou, na audição parlamentar em Maio deste ano, que foi enviado para a Assembleia da República o documento sobre os investimentos prioritários nas prisões nos próximos anos, aguardando-se a concretização do programa subjacente.. Por outro lado, não se assiste a uma grande modificação do tempo excessivo de cumprimento de pena, colocando Portugal num dos países europeus em que os reclusos cumprem penas mais longas e em que a liberdade condicional só é concedida numa fase muito avançada do cumprimento da pena, sem haver razões comparativas para tal.
- A concluir, se tivesse responsabilidades diretas sobre as políticas públicas para as prisões em Portugal quais seriam as suas prioridades?
A primeira prioridade seria, em conjunto com outras esferas governativas, a implementação de uma dinâmica de prevenção da prática de atos anti-sociais (prevenção do crime), reforçando significativamente a educação para a cidadania, o combate à pobreza e exclusão social, a eliminação do discurso do ódio, da violência e da vingança, promovendo a paz, a tolerância, o perdão e a misericórdia, dinâmica esta a desenvolver nas prisões, nas escolas, e na comunicação social. Por outro lado, há necessidade de alterar a política punitiva sobre a problemática das drogas (grande factor gerador de crimes, cujo consumo dentro das prisões é de todos conhecido), enquadrando-a legalmente a exemplo do que se passou com o tabaco e o álcool. Em paralelo, é urgente o reforço da formação humanista em todos os envolvidos no sistema prisional, desde os dirigentes aos guardas prisionais, fazendo cumprir os referenciais de direitos humanos a que estamos obrigados, o que levará à substituição duma justiça punitiva por uma justiça restaurativa (o foco deixa de ser o criminoso e passa a ser o crime e a sua prevenção e reparação).
Este conjunto de medidas colocar-nos-ia muito perto do objectivo que preconizo da abolição de instituições retrógradas, medonhas, arcaicas, medievais e violentas, como são as prisões.