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As Prisões e a Liberdade como Valor Absoluto

AS PRISÕES E A LIBERDADE COMO VALOR ABSOLUTO

“A liberdade concreta supõe que esteja garantido ao indivíduo o direito de se desenvolver, enquanto tal, num mundo cuja razão de ser seja para ele evidente e, portanto, sensata.”

Joël Wilfert – La liberté – (O Estado: Realidade Efectiva da Liberdade)

Vivendo um tempo em que a liberdade é posta à prova frequentemente, devemos ter em conta esta reflexão do filósofo contemporâneo Joël Wilfert que coloca a sensatez do meio como uma das condições necessárias para o exercício da liberdade.

Assim sendo, importa analisar se neste início do século XXI se verifica a existência de sensatez na aceitação de instituições criadas para decidirem e executarem penas e medidas privativas da liberdade.

Para o número 64 de “A Ideia” (Março de 2008), escrevi um artigo intitulado “Prisões: Que esperança?” onde desenvolvi o meu entendimento sobre a realidade de então. Passados estes anos importa actualizar esta problemática, nomeadamente no atropelo ao valor da liberdade.

A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem vindo a merecer reflexões que apontam neste sentido, acentuando-se um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das instituições onde se cumprem medidas privativas da liberdade, de que as prisões são um exemplo, como instituições perigosas para a afirmação desse valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2017 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado.

Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em variadas intervenções públicas. Relembremos algumas das frases mais significativas.

- Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) – Conferência Episcopal de Espanha – Padre José Sesma León

- A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) - P. António Correia – Capelão do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira

- O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos - Ex-Ministro da Justiça - Dr. Alberto Costa

- A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…) A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade. - Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal

- Todo o ser humano é maior que o seu erro! (…) Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! - Padre João Gonçalves – Coordenador Nacional da Pastoral Penitenciária de Portugal

- As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa. - Comissão Nacional Justiça e Paz

- O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público Dr. António Clunny

“O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) - “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana

(…) nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente. - “Vigiar e Punir” – Michel Foucault

O sistema penal vigente não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, retenção indevida de bens, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal, reforçando a consideração da liberdade como valor absoluto. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à autodefesa, consignado no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação.

As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais de cada estabelecimento prisional terem deixado de serem publicados desde 2010, sendo a opacidade inimiga da liberdade. Os dados conhecidos já nos dão uma ideia da dimensão aterradora duma política punitiva que se tem vindo a agravar, estando ausente qualquer dinâmica de prevenção no sentido duma sociedade mais humana, pacífica e fraterna.

Vejamos alguns dados sobre Portugal, relativos a 31 de Dezembro de 2016.

Durante esse ano cerca de 600.000 processos de inquérito foram registados e movimentados nos serviços do Ministério Público dos Tribunais Judiciais, tendo sido julgados cerca de 150.000. Temos sobrepopulação prisional, com o total de reclusos de 13.779 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (havia 191 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, sendo 75% das penas aplicadas superiores a 3 anos (havia 310 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). O tipo de crimes estava distribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 28%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 12%; (Deve-se ter em conta que muitos dos crimes contra as pessoas e contra o património destinam-se a obter meios para a problemática das drogas, pelo que os estupefacientes têm o peso mais relevante no condicionamento para a prática de crimes). O número de mortes por suicídio representou, em 2015, cerca de 30% do total de mortes nas prisões. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens divulgou, no seu relatório apresentado em 2016, que foram acompanhadas, durante o ano de 2015, nas CPCJs, mais de 73.000 crianças e jovens. Dos jovens internados nos Centros Educativos 95% sofrem de patologias psiquiátricas, com uma taxa de reincidência superior a 50% (o tratamento psiquiátrico nos Centros Educativos é de grande debilidade). Em 2016, as equipas de reinserção social da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) executaram um total de 54.600 pedidos de relatórios e audições na área penal. Em 31 de Dezembro de 2016, a DGRSP apoiava a execução de um total de 31.269 penas e medidas na comunidade, na área penal. No âmbito do apoio à execução de penas e medidas, foram registados, entre Janeiro e Dezembro de 2016, um total de 41.852 novos pedidos, 39.763 dos quais no âmbito penal. Em 2016, a DGRSP recebeu das entidades judiciais, relativamente à atividade de assessoria técnica à tomada de decisão e penas e medidas de execução na comunidade (Suspensão Provisória do Processo, Trabalho a Favor da Comunidade, Suspensão da Execução da Pena de Prisão, Liberdade Condicional, Medidas de Segurança relativas a Inimputáveis e outras), um total de 110.151 pedidos, dos quais, 101.861 no âmbito penal e 8.290 no âmbito tutelar educativo. Quanto ao tipo de atividade, 68.299 pedidos respeitaram a relatórios e audições e 41.852 pedidos à execução de penas e medidas na comunidade. Em 2016, foram recebidos 1.203 novos pedidos de apoio à execução de penas e medidas fiscalizadas por vigilância electrónica (Medida de Coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (VE), Pena de Prisão na Habitação, Adaptação à Liberdade Condicional, VE em contexto de violência doméstica, Modificação da Execução da Pena de Prisão, VE em contexto de Crime de Perseguição). No âmbito da jurisdição tutelar educativa, a DGRSP registou, em 2016, um total de 2.089 novas solicitações para o apoio à execução de medidas (Suspensão do Processo com e sem Mediação, Tarefas e Prestações Económicas a Favor da Comunidade, Obrigações e Regras de Conduta, Acompanhamento Educativo e Programas Formativos, Internamento em Centro Educativo e Outras). Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago (alguns cêntimos por hora), assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade, dos mais de 86% dos reclusos que não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos, infringindo o direito constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a fragilidade do apoio judiciário, insistindo-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional.

Serão precisos mais indicadores para qualificar o actual sistema prisional e de justiça de aterrador, frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os arguidos, os reclusos e os mais frágeis, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos? Será preciso ter em conta que cerca de 600.000 famílias estão sob ameaça de processo executivo por não conseguirem pagar as prestações dos créditos que lhes foram concedidos, num valor total de cerca de 6 mil milhões de euros (havia, em 2016, cerca de 4,4 milhões de pessoas/famílias com créditos concedidos)? Será preciso acrescentar que as dívidas fiscais atingiram, em 2016, o valor de € 15.000.000.000 e que as dívidas à Segurança Social ultrapassaram os € 7.000.000.000, sendo que muitas destas dívidas originam processo-crime? E os processos nos Tribunais Cíveis, Administrativos e Fiscais? E os processos instaurados pela ASAE, pelos Centros de Arbitragem, pelos Julgados de Paz e outras instâncias? E as execuções por dívidas que levam, muitas vezes, sem culpa propositada do devedor, à perda da habitação e de bens de grande valor afetivo? Como é possível viver num país, Portugal, com pouco mais de 10 milhões de habitantes e com este nível de litigância? Como é possível evitar que muitas pessoas tenham de seguir vias ilegais como razão de sobrevivência? As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema não nos dão esperança de alteração deste quadro catastrófico. A destruição das famílias provocada pelo medo e terror do que lhes pode vir a acontecer e pelo espectro da prisão não pode continuar.

As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada.

Esta situação continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs. Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia não punitiva para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente a sua comercialização e dinamizando uma política de sensibilização para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as drogas).

Chegados a 2017, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas, enquanto não se abolirem as prisões. A alteração profunda do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar.

Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI, abrindo caminho para a consideração da liberdade como valor absoluto. A crescente aceitação da justiça restaurativa, em que o foco se desloca do perpetrador do crime para o ato e a sua reparação, pode constituir um passo para a abolição das prisões.

Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, nas suas famílias, nas vítimas dos crimes e na ineficácia no ressarcimento dos danos provocados pelo crime, mas sem nos deixarmos arrastar pela análise pseudo-científica, pretensamente realista, que se traduz, muitas vezes, numa masturbação intelectual ineficaz para a resposta sobre a consideração da liberdade como valor absoluto. Fiódor Dostoiévsky constatou que “O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente”. Ora, os doentes precisam de ajuda para o tratamento e não de serem enterrados em prisões.

Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.”

Na construção das bases duma sociedade justa e pacífica e na convicção de que a felicidade humana está ligada, umbilicalmente, à existência em paz duma consciência esclarecida, importa intervir para que o trilhar do caminho da vida seja feito sobre pilares de ética e cidadania, ao arrepio dos caminhos assentes em valores primários de base repressiva que, infelizmente, são o suporte das políticas que actualmente governam o Mundo, apesar das declarações hipócritas de muitos governantes que nos querem fazer crer o contrário, assim influenciando o comportamento das pessoas que acriticamente os escutam. A via para a liberdade como valor absoluto passa por cada pessoa interiorizar o seu compromisso com essa liberdade. Já Agostinho Silva nos dizia num dos seus ensaios filosóficos:

“...

A primeira condição para libertar os outros

É libertar-se a si próprio.

...”

Manuel Hipólito Almeida dos Santos

(Abril de 2017)

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