Panorama da Realidade Prisional
Panorama da Realidade Prisional
Há 10 anos a O.V.A.R. iniciou a realização de Jornadas de Reflexão sobre o sistema prisional, encontrando-nos na sua 4ª edição, em tempo de Jubileu da Misericórdia. Neste espaço de tempo muito se disse sobre o sistema prisional, muitas declarações de intenções se ouviram de responsáveis políticos e muitos trabalhos académicos foram publicados (em 2004 tinha sido divulgado o relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, presidida pelo Prof. Freitas do Amaral). Em todas estas intervenções ressaltou a evidência do fracasso do modelo em que está assente o sistema prisional em Portugal, sustentando-se a ineficácia e a desumanidade que o caracteriza. Passados estes dez anos o que encontramos de diferente relativamente à realidade de então?
Temos maior população prisional, com o seguinte quadro no final do 1º semestre deste ano: O total de reclusos era de 14.250 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (Havia 210 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, estando 75% das penas entre os 3 anos e os 25 anos de prisão (Havia 312 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). O tipo de crimes estava distribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 27%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 13%. Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago, assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade. Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Continua a fragilidade do apoio judiciário. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos. Insiste-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional.
Há cerca de dois anos escrevi um artigo, reflectindo sobre esta matéria, de que respigo:
A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem merecido, recentemente, dentro e fora da Igreja Católica, reflexões que apontam neste sentido. Desde os Papas Francisco e Bento XVI ao Pe. Tolentino Mendonça, com muitos outros pelo meio, tem-se vindo a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das prisões como instituições perigosas para a afirmação deste valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. No I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária a questão da liberdade como valor absoluto esteve subjacente em muitas intervenções. Um dos temas dos painéis foi “Um outro sistema penal é possível”. Não era uma pergunta. Era uma afirmação! E esta afirmação comprometeu o congresso. Temos de construir um outro sistema já que o actual é desumano, violento, injusto, não cristão. Todos conhecemos a passagem dos evangelhos sobre a mulher adúltera e o desafio de Jesus: "Quem de vós estiver sem pecado que atire a 1ª pedra". Numa outra passagem dos evangelhos Jesus também nos diz que devemos perdoar não 1,2,3,4,5,6,7 vezes mas sim 70 x 7. Temos de perdoar sempre. Os ensinamentos de Jesus permitiram a construção de dois importantes pilares do cristianismo: O perdão e a misericórdia. No Pai nosso dizemos: Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E como disse D. Mário Toso na conferência de abertura do congresso “Não há justiça verdadeira sem perdão”. Na audiência pública do passado dia 11 de Setembro o Papa Francisco enfatizou que “julgar e condenar o irmão que peca é errado, pois não estamos acima dele, mas temos o dever de recuperá-lo à dignidade e acompanhá-lo no seu caminho”.
Assim sendo temos de ter a ousadia de abolir as palavras castigos e penas com o reconhecimento da imperfeição do ser humano e reconhecer a sua incapacidade para não cometer erros, independentemente da consideração que nos merecem às vítimas dos atos anti-sociais e da reparação dos danos que lhes foram provocados. Ninguém pode ser indiferente perante a injustiça mas a lei penal sem compaixão não é uma lei justa. Os cristãos não podem olhar para os presos como criminosos, nem os capelães e visitadores podem ser passivos para com o clima repressivo nos estabelecimentos prisionais. Temos de acrescentar mais pilares à justiça cristã, de que o exemplo da justiça restaurativa é um importante suporte (O foco da justiça é o acto e a sua reparação e não quem o comete). Temos de assentar na necessidade de afastamento da vingança como factor de punição. Como disse D. António Francisco dos Santos, na homilia da entrada na Sé do Porto em 6 de Abril de 2014: “Nos Evangelhos, os discípulos de Jesus aparecem como homens fortes, corajosos, trabalhadores, mas no seu íntimo sobressai uma grande ternura, que não é virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude e de compaixão. Não devemos ter medo da bondade". Também, D. Joaquim Mendes, na I Peregrinação da Pastoral Penitenciária, disse “…é muito importante ajudar a despertar a sociedade para a realidade das prisões. São pessoas anónimas que estão privadas da liberdade, mas não da sua dignidade”. Neste sentido, temos de promover a reconciliação e não a vingança. Condenar o pecado e não o pecador. Afirmar a liberdade e não a reclusão. Promover a correcção e não o castigo. Privilegiar a prevenção e não a repressão. O P. Valdir, da Pastoral Carcerária do Brasil, numa intervenção proferida no I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária, exortou-nos: “temos de deixar de ser coniventes com as prisões como instituições do pecado”. E D. António Marto também nos disse que as prisões são factores de dessocialização e desestruturação do ser humano. E, ainda, D. Ramon Calatrava demonstrou-nos que as penas de privação da liberdade produziram mais danos do que os crimes cometidos por aqueles que cumpriram essas penas. Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, tendo o filósofo Michel Foucault destacado, no seu livro Vigiar e Punir, que nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente.
Então, uma outra visão torna-se necessária. Será que teremos de continuar a pensar em penas e castigos? E porque não um código de valores? E porque não começar com a reclamação ao poder político do nosso país duma amnistia significativa que leve o perdão e a misericórdia às prisões? A honra, a vergonha e o dever do exemplo são valores que devem ser exaltados. Temos de ser honrados com os compromissos que assumimos. Temos de ter vergonha de proclamar boas intenções sem as levar à prática. Temos de dar o exemplo. Este sistema penal não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação. As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais dos estabelecimentos prisionais terem deixado de serem publicados desde 2010. O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar. Algumas intervenções proferidas no congresso pareceram-me colocar como necessária a modificação do recluso enquanto pessoa, o que me parece desumano e não conforme com os direitos humanos universalmente consagrados. O que me parece que temos de fazer é reconhecer a todos os seres humanos o direito a que a sua personalidade seja defendida e respeitada, exortando-os e possibilitando-lhes as condições para a não reincidência na prática de actos anti-sociais mas não a sua modificação enquanto pessoa. Não foi isto que Jesus Cristo fez com a mulher adúltera? Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI.
Na sua visita às Filipinas, o Papa Francisco mais uma vez mostrou a necessidade da humanização dos tempos que vivemos. Emocionei-me com o abraço que o Papa deu a uma menina filipina de 12 anos, Glyzelle Palomar, que viveu na rua até ser recolhida por uma ONG. Na sua intervenção ela, chorando compulsivamente, tinha perguntado a Francisco: “Há muitas crianças abandonadas pelos próprios pais, muitas vítimas de muitas coisas terríveis como as drogas e a prostituição. Porque é que Deus permite estas coisas, já que as crianças não têm culpa? Porque vem tão pouca gente ajudar?*”O Papa deixou o discurso que trazia preparado e improvisou: “Ela hoje fez a única pergunta que não tem resposta, e como não lhe chegavam as palavras teve de fazê-la com as lágrimas. […] Quando nos perguntarem porque sofrem as crianças (…) que a nossa resposta seja o silêncio e as palavras que nascem das lágrimas. […] Ao mundo de hoje faz-lhe falta chorar, choram os marginalizados, choram os que são deixados de lado, choram os desprezados, mas aqueles que temos uma vida mais ou menos sem necessidade não sabemos chorar. […] Certas realidades da vida só se vêem com os olhos lavados pelas lágrimas”. Isto exige uma limpeza geral dos olhos, da mente, do coração, das palavras e das acções”. Talvez seja preciso, como disse Francisco, começar por “aprender a chorar!” A chorar pelo modo como tratamos seres humanos nas prisões.
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada.
Esta situação continua a persistir já que se nota um autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs. Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera ao invés de encarar a realidade, enquadrando-a legalmente (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool).
Chegados ao Outono de 2016, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas. A alteração do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar. Também, é necessária a ajuda duma pastoral penitenciária diocesana que envolva os cristãos.
Na sua recente visita à Polónia, o Papa Francisco esteve nos campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, e comentou que a crueldade praticada pelo regime nazi na primeira metade do século XX ainda hoje se mantém, nas situações como o encarceramento massivo. Disse o Papa: “Recordar dores de 70 anos atrás: quanta dor, quanta crueldade! Mas é possível que nós, homens criados à semelhança de Deus, sejamos capazes de fazer estas coisas? As coisas foram feitas… Eu não gostaria de vos deixar amargurados, mas devo dizer a verdade. A crueldade não acabou em Auschwitz, em Birkenau. Também hoje, hoje!... Hoje existem homens e mulheres em prisões superlotadas: vivem – perdoem-me – como animais! Hoje existe esta crueldade”, enfatizou o Pontífice.
Esta intervenção do Papa foi objecto duma notícia no site do Pastoral Carcerária do Brasil que a titulou:” As prisões são uma Auschwitz do nosso tempo”.
Não queiramos deixar para os vindouros a desculpa de que não sabíamos. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como proclamou Sofia de Melo Breyner Andresen.
As prisões são uma Auschwitz do nosso tempo.
Porto, 17 de Outubro de 2016
Manuel Hipólito Almeida dos Santos - Presidente da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos