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Os Usos Privados do Sistema Criminal Penal

Elaborando um ponto de vista abolicionista, adoptando-o como ponto de vista, é possível ver melhor as falhas do sistema penal e criminal. Estas falhas podem ser pensadas como casos isolados, como erros humanos, ou como sintomas de males generalizados e funções institucionais. Há que construir critérios capazes de distinguir as falhas estruturais das falhas de interpretação da função criminal-penal. Só uma perspectiva abolicionista, só a consideração da eventualidade praticamente certa da superação do paradigma criminal-penal actual por outro regime qualquer, admite pensar esta diferenciação entre os dois tipos de falhas.

Goffman (2004) regista haver pessoas a quem os estigmas sociais não inibem o contacto. Chamam-lhes pessoas informadas, pela superioridade intelectual e moral que lhes é geralmente reconhecida. Estas pessoas não se deixariam afectar pelo sistema emocional de repugnância social em torno dos alegados e reais riscos de proximidade com pessoas estigmatizadas. Não aceitariam as barreiras criadas pela produção social de pessoas impuras, intocáveis, excluídas. Barreiras, todavia, respeitadas – na verdade construídas – pela generalidade das pessoas.

Durkheim (2002) faz referência à existência de um fenómeno semelhante entre os aborígenes australianos. No caso, o isolamento e a dualidade pureza impureza não dividiam a sociedade: uniam-na. O tempo profano, normal diríamos nós actualmente, em que cada família tratava da sobrevivência nas condições difíceis do deserto australiano, usando um largo território, era ciclicamente interrompido por reuniões tribais que sacralizavam, em festa, o espaço onde a reunião tinha lugar. O território profano sobre o qual se realizavam os rituais sagrados perdia todas as suas qualidades profanas durante as festas e só depois delas essas qualidades se voltavam a manifestar. Ao inverso, aquilo que fora sacralizado durante as festas era ignorado fora desse tempo. Isto é, toda a sociedade tribal se transformava radicalmente aquando do tempo da reunião, sobre a qual se forjavam novas energias (Collins 2005), confiança na existência, identidades sociais e alianças sociais que sustentam tudo o resto. O papel das pessoas informadas de que fala Goffman, numa sociedade como a aborígene, era cumprida pelos que organizavam os rituais. Em circunstâncias normais, no tempo profano, eram iguais aos outros. Sobreviviam longe dos outros e na dependência da ajuda que pudessem prestar em caso de necessidade.

Na descrição de Goffman, essas pessoas são os trabalhadores ou activistas sociais. Versões modernas dos sacerdotes, dizia Durkheim. Filantropos, religiosos, profissionais de instituições de controlo social, políticos populares ou populistas, etc. A maioria dessas pessoas não afectam o funcionamento da sociedade moderna no sentido da sua transformação. Instalam-se na divisão de trabalho que a caracteriza. Limitam-se, por dever profissional ou/e por convicção, a fazer pontes entre os dois mundos apartados como que para todo o sempre, e não apenas temporariamente. O seu papel é cruzar os pontos de passagem admitidos pelos muros materiais e virtuais que tornam uma grande parte da humanidade relevante – por exemplo, para efeitos de emprego, de cidadania, de cuidados de saúde – mas o resto irrelevante. Sobretudo mulheres, crianças e velhos, claro. Todos os que estão abaixo do limiar de pobreza, incluindo os que sofrem de sede e fome, quando há recursos materiais para os manter a todos com a dignidade que formalmente as leis reconhecem e obrigam as instituições a reconhecer a todos e cada um dos seres humanos.

Ser abolicionista não tem de ser imaginar uma arma de guerra capaz de, cirurgicamente, explodir todos os estabelecimentos prisionais e calabouços de esquadras de polícia que existam. Nem terá utilidade tal arma, pois o que produz as prisões não são os autores das obras de arquitectura penitenciária. São as sociedades modernas que produziram e reproduzem as prisões, apesar da múltiplas vezes denunciada e reconhecida irracionalidade. Isto é, a incompatibilidade entre as finalidades anunciadas e os resultados práticos. Nomeadamente a prevenção do crime, o respeito pelos direitos humanos dos arguidos e dos condenados, a segunda oportunidade para quem cometeu crimes, nada disto é conseguido pela utilização do sistema criminal penal.

O sucesso do abolicionismo, porém, não depende da exposição da evidente irracionalidade do sistema. Mostra-o a história. Depende da resposta que possa ser dada à pergunta fatal? O que fazer com os criminosos? Como compensar as vítimas de forma a dar-lhes o alento para sobreviverem aos crimes?

Resposta oferecida pelo sistema criminal penal tem sido satisfatória: olho-por-olho e dente-por-dente, através de um sistema de medida normalizado e impessoal, tempos de prisão, válido para todos, e que liberta as vítimas de fazerem a vingança: delegam no estado a forma mais higiénica de fazer justiça, isto é, cumprir a vingança que alivie, quanto possível, a angústia da insegurança e instabilidade existenciais que um crime provoca.

A questão abolicionista é esta: por que tem sido satisfatória esta resposta à necessidade social de reagir perante a ocorrência de episódios perturbadoras da estabilidade emocional das pessoas?

As sociedades misóginas (que poupam as mulheres da experiência penal que impõe aos homens), elitistas (que poupam as pessoas integradas, incluindo a maioria dos pobres, da repressão penal) e dissimuladas (delegam o poder de vingança em instituições ao serviço das elites, segundo o pacto institucional cujos princípios foram desenhados por Montesquieu) fazem justiça patriarcalista, de classe, cujas instituições e profissões são formatadas e ensinadas a obedecer a princípios tácitos dissimulados, a coberto de princípios explícitos mas desrespeitados, na prática. É o que se costuma referir como a diferença entre a lei dos livros ou teoria e as práticas jurídica e judicial.

Sociedades cujos poderes fabricam a sua própria segurança e distância da sociedade dominada através do controlo da relação entre as polícias (guerreiros para lidar com os populares), os procuradores (agentes de ligação do estado no seu todo ou do próprio executivo junto do sistema judicial), os juízes (órgãos de soberania em representação da antiga aristocracia local) e o sistema penal racional, isto é, dissimulado atrás da função de contenção dos sentimentos de vingança das populações, estabelecendo com elas um pacto semelhante o do antigo carrasco com os espectáculos de execução de pessoas, em nome do Senhor. O povo grita vingança – por exemplo, nas páginas dos jornais online de onde se descrevem as versões policiais dos crimes – e os poderes fingem não saber que os sentimentos de vingança são efectivamente cumpridos pelos novos carrascos, torturadores incógnitos que cumprem o seu papel e ganham a protecção do estado. Estado que, por sua vez, tira partido dessa configuração institucional e constitucional para proteger as elites e a classe política, seja contra a concorrência – fazendo presos políticos à mistura com o processo de criminalização comum – seja contra as revoltas populares, criminalizando os movimentos sociais, os sindicatos, os instigadores à revolta, intelectuais desalinhados ou mesmo simples bodes expiatórios inventados aleatoriamente para servir de exemplo e promover o medo ou mesmo o terror entre a população, e assim a desanimar e desmobilizar.

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