Sistema Criminal Penal
Nada é preto e branco na vida humana. Nem o abolicionismo nem o sistema criminal penal. Como as mulheres, ou outros temas de indagação, fazem parte de um conjunto vasto de realidades que não podem ser, na prática, separadas umas das outras nem dos fluxos de mudança e transformação que caracterizam a vida.
Olhar para o abolicionismo como uma ideia de perfeição ou olhar sistema criminal penal como o melhor sistema prático para lidar com os sentimentos de vingança, só faz sentido quando se evitando a reconhecer que a mudança social envolve a transformação, mutação, de pessoas e instituições. Nem o abolicionismo idealizado nem o sistema criminal penal são fenómenos mecânicos a que possamos atribuir propriedades estáticas. O primeiro foi derrotado nos anos oitenta e desmantelado, na prática, até hoje. O segundo continua uma tradição de uso dos poderes para gerir a violência e os conflitos, às vezes a favor de todos, outras vezes a favor dos poderosos, em todo o caso contra grupos sociais e pessoas previamente estigmatizados e vulneráveis a serem usados como bodes expiatórios. Estamos facilmente dispostos a reconhecer isto no caso da Inquisição (Saraiva 1994), no Holocausto, ou nos sistemas criminais penais dos estados nossos inimigos. A nossa disposição muda radicalmente quando se trata de avaliar o que acontece no nosso país. A fé e a confiança nas instituições políticas e judiciais que afectam directamente a nossa auto-estima e identidade, compreensivelmente, transformam a nossa capacidade de análise. Cria um filtro cognitivo distinto, caraterizado pela inibição de observar aquilo que de extremamente desagradável acontece. E fazemo-lo usando, com moderação, o mesmo sentimento que nos conduz à vingança: culpar alguém, eventualmente a própria vítima, da intranquilidade emergente.
Quando nos atemos a culpar alguém que tem poder suficiente para se auto-determinar, como um homem, esse pensamento, sobretudo quando é expresso e assumido (em vez de ignorado e dissimulado) exige acção de vingança. De compensação. De reacção, como dizem os juristas para explicar a posição doutrinariamente passiva dos institutos criminais penais. Essa reacção institucional tem a virtualidade de se impor às pessoas que sentem necessidade de vingança, para aplacar os seus sentimentos de insegurança e instabilidade. O estado ou o poder judicial afirma-se contendo os processos de vingança e guardando para si a prerrogativa de exercer uma vingança objectivamente justa. Aplica a regra do olho por olho, dente por dente, como forma racionar de distrair os acusadores e reclamar deles, e de toda a gente, o respeito pelas prerrogativas institucionais, segundo a perspectiva de Hobbes. Ou como dizia Churchill para o caso da legitimidade política, a democracia liberal funciona muito mal mas é o melhor sistema conhecido. O sistema criminal penal é mau, mas alega ser melhor do que anarquia, a lei da selva, o poder real ou autoritário, etc.
Esse argumento faz sentido. Mas não dá segurança a quem tenha assistido ao modo como, em Portugal, o sistema foi usado pela ditadura salazarista e como a crítica a tais usos tarda a ser feita pelos juristas democratas, não sendo incomum as queixas de 40 anos depois do fim do regime os tribunais decidirem como se ainda estivéssemos noutros tempos, nomeadamente no que toca à situação social da mulheres ou aos privilégios (Preto 2010). Noutros países será diferente? Tenho procurado, junto de juristas de países do leste europeu, perguntar qual são as diferenças de princípio ou de prática entre o sistema criminal penal no tempo do império soviético e actualmente. Nenhum sequer entende a pergunta.
Desde sempre, a espécie humana teve de lidar com os seus sentimentos, como qualquer outra espécie. A fim de sobreviver adotamos várias estratégias. Muito diferentes umas das outras. A espécie humana é conhecida por produzir diferentes culturas, diferentes formas de organizar as vidas humanas e as sociedades, a fim de lidar com o sexo, com raiva, com as alterações climáticas e com os sentimentos que emergem espontaneamente. A espontaneidade do momento, claro, decorre das opções culturais em que as pessoas e as sociedades se encontram a viver, sem que tenham sido chamadas a decidir alguma coisa, a não ser como irão lidar com as suas próprias emoções. A experiência de o fazer é que pode ser elaborada cognitivamente, transmitida, ensinada e reutilizada, por nenhuns, alguns, muitos outros seres humanos. Transformando ou não os fundamentos ou parcialmente as sociedades.
Aqueles que nasceram na cultura muçulmana serão mais sensíveis à presença das mulheres, interpretando-a como um desafio sexual e social que aqueles que nasceram na cultura ocidental. Isto é talvez verdade hoje. Quando eu era criança, lembro-me que em Portugal os rapazes verbalizam a experiência de excitação provocada quando voam pernas de mulheres acima do joelho. Esta foi, por ventura, uma parte principal das conversas para afirmação da idade adulta para os portugueses da minha geração. Hoje, os rapazes não se preocupam com as raparigas e elas podem adoptar uma atitude de caça, nas escolas e nas ruas. Pelo menos é o sentimento de minha geração, reflexo não só da mudança cultural mas também do contraste de sentimentos incorporadas pela experiência. Continuamos, pelo resto da vida, a sentir aquilo que fomos treinados a sentir e, eventualmente, reprimimos isso. Outras vezes utilizamos essa estranheza para fins íntimos. O que não quer dizer que essa auto-repressão não cause sentimentos que estimulam e suportam o exercício de actos de vingança.
A Inquisição foi um antecessor do sistema criminal penal moderno, em Portugal. Esse é uma das principais mensagens do trabalho Foucault sobre a prisão. As penas transformam-se com a história da organização do poder. Assim, podemos esperar a transformação do actual sistema criminal penal, actualizando-se dentro da nossa cultura e instituições em devir. Podemos e devemos procurar manter aquilo que são bons princípios e formas eficazes de os realizar. Podemos e devemos considerar abolir os princípios que não funcionam ou formas de realizar princípios bons mas que os subvertem para outros fins que não os previstos.
Estão me melhor condição de pensar e valorizar o que não funciona ou não tem valor aqueles que estejam abandonados ou vítimas do regime actual. Esses, em democracia, têm a possibilidade de se vingarem da sociedade que os exclui. Podem imaginar mundos onde possam ser integrados e divulgar a boa nova. A possibilidade de viver a esperança. Seja num mundo inatingível, para lá da morte. Ou um mundo que há-de vir, num tempo de uma geração ou pouco mais. A situação actual no ocidente não é de esperança. Há quem trabalhe para transformações que poderão ocorrer, apenas, daqui a cinco gerações (AAVV 2013). É possível, portanto, viver em desespero de causa e apontar não para um mundo que não existe mas um mundo que vai existir mas para os nossos netos.
Foi o que fizeram os artistas que estavam à frente do seu tempo. Vingaram-se dos defeitos sociais que a maioria recusava ver e, através as tecnologias de informação, viveram mediados dos respectivos auditórios pelo tempo que distancia gerações. Gerações distintas que, igualmente, recolhe e reconhecem aquilo que é fundamental na experiência humana de todos os tempos.
A democracia abolicionista é um ideal político de protecção de artistas ou pessoas vulgares cuja existência pode ser enriquecida e, de facto, apenas pode ser vivida em liberdade se os seus sentimentos de vingança poderem ser canalizados para criar mundos virtuais, profecias, que eventualmente servem também outros da sua geração ou de outras gerações.
Claro que isso implica riscos para que esteja em posições de poder. Pessoas que também devem ser protegidas – como são, nomeadamente por serviços de segurança e de propaganda – da veleidades sociais de os usar como bodes expiatórios para concretizar sentimentos de vingança. A depressão de alguns não deve – esse é um princípio reconhecido mas ainda não posto em prática – vitimizar outros como forma mágica, e efectivamente eficiente, de aplacar maus sentimentos. O que fazer, por exemplo, quando há um homicídio?
A solução liberal é a de usar as prisões como penas únicas. E utilizá-las apenas em última instância, quando não é possível evitar males maiores do que a aplicação de uma pena de prisão. Por alarme social ou por perda de valor das regras de urbanidade, por exemplo, os efeitos de baixar as tensões sociais de um encarceramento podem justificar o mal que faz. Essa seria a função do juiz criminal, garante das liberdades, avaliar qual dos males é o menor. Regra que podemos admitir, para efeito de argumento, ser respeitada nos tribunais para a generalidade dos casos. Mas não respeitada nas prisões, onde a protecção da liberdade individual é suspensa e passa a ser usada como instrumento de subordinação e tortura. E não é respeitada em casos especiais, como quando se trata de lidar com populações fortemente excluídas, como filhos dos escravos nos EUA, imigrantes ou ciganos na Europa, e outras populações que caberá à sociologia definir melhor o perfil quando for capaz de o fazer. Jakobs diz que, mais recentemente, na sequência da adopção pela ONU das políticas proibicionistas globais (Woodiwiss 1988), a guerra contra o terrorismo criou ainda um terceiro patamar de discriminação sistemática entre pessoas com epicentro no sistema criminal penal (Jakobs & Meliá 2003).