top of page

Repugnância Perante o Securitarismo

A violência provoca repugnância aos seres humanos civilizados (Elias 1990). Mas nem toda a violência causa repugnância do mesmo modo. Nos textos sociológicos pode detetar-se repugnância face à violência avulsa e alheamento complacente pela violência organizada institucionalmente (Dores 2014). Nos textos jornalísticos, as referências à violência partem do princípio de que é evidente o que seja a violência e que ela é natural em situações sociais com perfil desqualificado (Dores 2013). As descrições jornalísticas dos crimes, seguindo de perto as versões policiais, resumem a sua pesquisa à determinação do culpado. Exploram as emoções profundas que tal indicação provoca nos leitores. Para os fidelizar e não perder, os jornalistas do crime têm a necessidade e o cuidado de jamais identificar o culpado com o perfil social do leitor. Assegura assim a criação de um espaço-tempo de indignação contra desconhecidos relativamente inócuo, pelo menos no imediato. Desconhecidos, cujos perfis morais podem representar defeitos de personalidade atribuíveis a pessoas conhecidas mas, ao mesmo tempo, localizadas suficientemente longe, em termos sociais, para permitir a escolha do leitor: descartar o assunto ou levá-lo à consideração dos amigos ou familiares que se comportam como os criminosos expostos nos jornais.

O jornalismo do crime tem uma função social de uniformizar alguma moral cívica e dar conteúdo socialmente discriminatório a distinções culturais (Bourdieu 1979). Desse reforço de práticas discriminatórias a teoria social também não escapa (Dores 2016). Claro, ambas as disciplinas são apenas pontas de icebergs de práticas e sentimentos sociais profundamente arreigados na vida social. Icebergs que cabe à sociologia e a outras ciências sociais e a ciências de saúde e disciplinas doutrinárias descobrir. Fazê-lo requer mútua colaboração, em vez de encobrimento cognitivo das realidades profundas por detrás dos crimes, a pretexto de darem prioridade a sentimentos corporativos e a práticas de diferenciação disciplinar estanque. Os juristas tratam das garantias do processo criminal e param a sua actividade à porta das prisões, onde os presos são tratados de acordo com os preceitos administrativistas como coisas. Os assistentes sociais e psicólogos e outro pessoal de saúde ocorre às prisões para manter vivos e sem sintomas de doenças os presos doentes do encarceramento. Mesmo quando os relatórios de saúde são perentórios a assinalar graves riscos de saúde causados pelo isolamento penitenciário, as razões de segurança – sejam elas quais forem – prevalecem dentro das prisões. As mortes não são evitadas: são escamoteadas, assim como as respectivas causas (Pontes & Dores 2015).

Entre a sociedade, que se representa a si mesma como pacificada – como explicou Max Weber ao referir o monopólio da violência imposto pelos estados-nação –, e o estado que deveria tratar todos por igual, como o mesmo autor descreveu a burocracia, há um mundo de terror, o inferno na Terra (Zimbardo 2007). As prisões escondem e mostram a perversidade humana, expurgando-a magicamente da sociedade, assim purificada, através do poder de estado, assim sacrificado a manchar as suas mãos de sangue sacrificial.

É certo que o direito criminal conhece melhor que outras disciplinas essa predisposição humana para encontrar bodes expiatórios e trazê-los para o exercício sacrificial. As polícias e as prisões têm, é certo, a função meritória de subtrair à sociedade os seus alvos sacrificiais. Porém, convenhamos, se poderá ser essa função que dá legitimidade ao sistema criminal-penal não é essa a sua função mais frequente. Mais frequentemente, como dizem os juristas envolvidos no sistema, ocupa-se de bagatelas penais e deixa a caça grossa escapar impune. Como é público e notório. Menos frequentemente, em democracia, o sistema criminal-penal é usado para fins políticos. Os maus usos não denigrem os bons usos. Mas estes últimos não evitam os primeiros.

É aqui que entra o espírito abolicionista: os instrumentos à disposição das sociedades e das instituições para minimizar as más práticas e valorizar as boas práticas, no caso das prisões, são notoriamente ineficazes. O reconhecimento geral dos riscos de tortura nas prisões e nos quartéis, inscrito em tratados internacionais de direitos humanos, sobretudo influentes e reforçados na Europa, não têm sido capazes de prevenir nem a tortura, nem os maus tratos, nem os tratamentos degradantes, de presos e profissionais, cujos estados de saúde não enganam: viver na prisão está associado a aumento do risco de contrair doenças graves de boca, do foro mental, doenças infectocontagiosas, de adição, doença da institucionalização, etc. Se as prisões são escolas do crime, são caríssimas (cerca de três salários mínimos por cada preso, em Portugal), preocupação para a saúde pública, incapazes de prevenir os crimes, criadoras ou reforço de situação de alienação social, encargo para a sociedade quando recebe os que cumpriram a pena e estão a necessitar de cuidados especiais para organizarem a vida normal, que muitas vezes são mal sucedidos, porque é que existem as prisões?

Existem para conter os criminosos. Alguns criminosos. Por exemplo, não servem para conter os criminosos de colarinho branco (Jakobs & Meliá 2003). Como dizem os liberais, deve ser uma instância de último recurso. A pergunta que se pode fazer é, então porque há tanta gente na prisão, tanta gente que não representa perigo social? Por que razão se aumentou tanto o risco de condenar inocentes, em vez de seguir estritamente a regra de in dubio pro reo?

A dialética entre o que se determina, em doutrina, e o que se pratica nas instituições, a diferença entre o direito nos livros e o direito nos tribunais e nas prisões decorre, na prática, sob a tutela de processos históricos complexos e contraditórios. No caso dos países ocidentais (os países da Europa de Leste têm outra história), nos anos setenta perfilaram-se duas atitudes perante os sistemas penais: a) o abolicionismo já descrito acima; b) o proibicionismo, a guerra global das drogas, construído após a experiência da Lei Seca nos EUA e da manipulação política e corrupção sobre os negócios que tal lei permitiu nas cidades norte-americanas que a adoptaram (Woodiwiss 1988). Já neste século, a guerra contra o terrorismo aprofundou a guerra contra as drogas, com episódios abjectos como Guantanamo, Abu Grahib, as prisões secretas da CIA. Confirma-se: o securitarismo ganhou em todas as frentes o seu debate político com o abolicionismo, atitude inversa no campo da segurança.

O securitarismo imagina que as forças de segurança do estado servem para assegurar segurança à sociedade. Para tornar realista esta asserção, as policiais são organizadas de modo a assumirem posições de defesa de certas classes sociais, certos bairros residenciais, certas etnias, certos grupos de idade, e tomarem posições de ataque contra outras classes sociais, bairros populares estigmatizados para o efeito, jovens que ocupam as ruas ou espaços que se querem privatizar. Desse modo, em muitas sociedades europeias tem sido possível naturalizar a presença da polícia segundo estas normas e silenciar a comunicação social sobre a disparidade social de critérios de actuação das forças de segurança. Este é pensamento e sentimento dominante: quem é atacado pela polícia é por que alguma coisa terá feito. Ou, em contraponto, a polícia representa o racismo social dos grupos sociais mais bem instalados e, por isso, não vale a pena opor-se-lhes nem legalmente nem pela força, pois as represálias serão fulminantes.

Algozes, vítimas e cúmplices, todos estão de acordo de que é este o nosso modo de vida com o qual temos que viver. Mas isso não foi sempre assim. As revoluções de cultura da juventude nos anos sessenta e setenta criaram comunidades livres, à procura de novas formas de organizar a vida social, nomeadamente procurando noutras culturas estranhas, através também das suas drogas estranhas ao álcool e ao tabaco típicos do ocidente, como do sexo e da música. Comunidades que falharam, como alterativas ao individualismo que se radicalizou desde então. Comunidades perseguidas politicamente de modo a que recuem e deixem de ser um espectro do realismo que pode representar uma transformação profunda o modo de vida social dominante. O discurso único associado ao neo-liberalismo é também, como disse Sarkozy no acto de tomada de posse do seu último mandato como presidente do estado francês, um desejo de fim das sequelas do Maio de 68, das ideias de poder viver em igualdade.

Durante as últimas quatro décadas, manifestamente, o abolicionismo deixou de ser um pensamento que representa a possibilidade razoável de manter um estado de espírito adequado e o proibicionismo ganhou todos o espaço disponível. Nem o presidente Obama conseguiu cumprir uma promessa eleitoral simples reiterada para o seu segundo mandato: fechar a prisão ilegal que os EUA mantêm em solo cubano: Guantanamo.

O espírito abolicionista imaginou o vento do destino favorável. Qual lebre, foi ultrapassada pelo cágado proibicionista. A quem ninguém se atreve a interpelar a fealdade. Não pegou a ideia de curar, cuidar, humanizar, responsabilizar sem culpabilizar, libertar dos ciclos viciosos aqueles que lá caiam, em vez de os remeter para novos ciclos viciosos como castigo, esperando que a mágica da reabilitação social ocorra, como os ermitas esperam pela santificação. Apesar do lema, faça amor não a guerra, com o fim da guerra do Vietnam o que vingou foi a vingança contra os oprimidos que ganharam a guerra: os vietnamitas e os norte-americanos anti-belicistas. Numa expressão que se tornou famosa: tolerância zero. Para dar poder à polícia houve que a animar com tarefas para cumprir todos os dias: tarefas repressivas. Estímulos oficiais à promoção e propagação do espírito vingativo.

Posts Recentes
bottom of page