A Prisão e suas Consequências. Como Ajudar?
Há quarenta e três anos que os vicentinos da O.V.A.R. têm vindo a enriquecer o seu património afectivo e de conhecimento humano, de valores profundos, no seu contacto com os reclusos e suas famílias, nos estabelecimentos prisionais da diocese do Porto (Custóias, Paços de Ferreira, Santa Cruz do Bispo e Vale do Sousa), tentando transportar para dentro das prisões a mensagem cristã de fraternidade e para quem a ajuda, baseada numa cultura de esperança, pode representar um apoio de fortalecimento espiritual importante. E digo que os vicentinos se enriquecem porque o que recebem desse conhecimento do ser humano e das suas circunstâncias é muito mais do que aquilo que dão. E como é que isto acontece? É que não nos podemos esquecer que dentro das prisões estão pessoas. Pessoas como todas as outras, com defeitos mas também com qualidades (e tenho visto reclusos com mais qualidades do que têm pessoas que nunca foram presas), pessoas possuidoras de afectos, pessoas com famílias que as querem bem, pessoas que em fases da vida trilharam caminhos que as levaram à prisão. De todas as pessoas que tenho conhecido dentro da prisão, algumas a cumprirem penas pesadas por crimes graves, ainda não conheci nenhum caso em que colocando-me nas circunstâncias em que o crime foi cometido pudesse ter feito melhor do que agir como o recluso agiu. As circunstâncias e as suas condicionantes têm um peso que nos impede juízos implacáveis e definitivos. Continuamos na reflexão sempre inacabada entre o determinismo e o livre arbítrio. Isto não retira visibilidade às consequências, por vezes dramáticas, para as vítimas dos crimes que levam os perpetradores à prisão. Sempre que tomo conhecimento de violência criminosa fico perturbado com o grau de selvajaria de que as pessoas são capazes, assim como do sofrimento infligido às vítimas e suas famílias, interrogando-me do porquê da insuficiência duma cultura humanista na sociedade que, ao privilegiar a economia e a tecnologia, transforma as pessoas em seres produtores, descartáveis, com graves carências de ética e cidadania. As vítimas merecem uma profunda solidariedade da sociedade, enquanto a preocupação na ajuda aos reclusos centra-se na contribuição para a sua reinserção, redução da conflituosidade social e na criação de condições que evitem a reincidência na prática de actos socialmente censuráveis. A vida dentro da prisão tem requintes de crueldade, de desumanidade, de tortura e de degradação do ser humano. Este retrato tem vindo a ser mostrado ao longo dos anos por várias pessoas e entidades, algumas delas representando órgãos do poder político e judicial, mas, infelizmente, os alertas pouco êxito têm tido no tratamento e prevenção dos comportamentos anti-sociais. Por exemplo, neste mês de Junho de 2012, continuamos a assistir a um nível de aumento da população prisional sem paralelo na história recente, sendo que registando-se em 15 de Junho último o valor de 13.450 reclusos, o que nos aproxima já do valor máximo registado, tal origina problemas de sobrelotação das prisões (a lotação máxima é de 12.077 reclusos) com as consequências inerentes na degradação das condições de vida no interior das prisões como a falta de trabalho, diminuição do espaço vital, inferior qualidade da alimentação, aumento de conflituosidade, diminuição da segurança, etc… (não incluindo os condenados que cumprem penas de prisão por dias livres e prisão domiciliária – só nos últimos 10 anos estes tipos de penas aplicaram-se a mais de 5.000 pessoas). Por outro lado, não tem havido progressos na reinserção social dos reclusos, notando-se até uma diminuição da intervenção das estruturas oficiais da reinserção social (a integração da Direcção Geral da Reinserção Social na Direcção Geral dos Serviços Prisionais ainda não deu frutos conhecidos), a que não serão alheias as restrições orçamentais conhecidas e a falta de empenhamento político necessário. Isto reflecte-se na limitação das vias de reingresso dos reclusos na sociedade, proporcionando o prosseguimento dos caminhos que levam à transgressão e à prática de actos anti-sociais, com o consequente retorno à prisão. As limitações existentes à formação dos reclusos e o acesso destes a esses meios de formação e informação provocam dificuldades à melhoria da sua qualificação, agravando o inêxito observado na reinserção social. O facto dos reclusos não terem acesso à Internet e às tecnologias de informação e comunicação, além de poderem ser lesivas dos direitos dos reclusos, consignados nos referenciais jurídicos internacionais aplicáveis a todas as pessoas que se encontram em situação de detenção ou prisão, dificulta a sua defesa, o acompanhamento da evolução da sociedade e a sua formação educativa. Neste caso não será difícil imaginar a dificuldade dos reclusos prosseguirem estudos, reflectida nas baixas percentagens de aproveitamento escolar nas acções de ensino nas prisões (mais de 60% dos reclusos só têm o 6º ano ou menos de escolaridade). A simples enunciação dalguns aspectos da vida dentro dos muros das prisões, deve ser sempre relativizada face à gigantesca dimensão dos problemas quotidianos. A despersonalização dos reclusos pode começar pela apreensão dos seus documentos de identificação e acabar num mundo retratado por Kafka no seu livro “O Processo”. Recentemente verificou-se um agravamento das condições básicas necessárias a um mínimo de dignidade de vida para um ser humano. Desde a falta de produtos higiénicos (dentífricos, sabonetes, papel higiénico, etc…) que o Estado está obrigado legalmente a proporcionar, à quase inexistência de material escolar, à redução e/ou suspensão de apoio financeiro para aquisição de próteses dentárias, auditivas ou oculares, ao abaixamento da qualidade da comida fornecida (Há concursos de fornecimento da comida às prisões de empresas com fins lucrativos, com valores de diárias para 4 refeições – pequeno almoço, almoço, jantar e reforço nocturno – por valores inferiores a € 5,00 diários), ao aumento das restrições de artigos que podem ser oferecidos aos reclusos (por exemplo, já só é possível oferecer a cada recluso 1 Kg de alimentos por semana), às limitações dos contactos telefónicos, até à sobrelotação das celas (em 31 de Dezembro de 2011 trinta dos quarenta e nove estabelecimentos prisionais albergavam reclusos em número superior á sua lotação e esta realidade agravou-se este ano), à inexistência na prática de apoio jurídico indispensável para quem se encontra a cumprir pena, aos comportamentos arbitrários de alguns funcionários e guardas prisionais lesivos dos direitos dos reclusos, à falta de lavatórios em locais como cantinas, ao pouco rigor e transparência na gestão do dinheiro dos reclusos à guarda dos estabelecimentos prisionais (não rendendo qualquer juro aos reclusos após anos em poder dos estabelecimentos prisionais), às limitações à vontade espontânea de celebrar cultos religiosos, etc…etc…etc…, são alguns dos muitos problemas que enfrentam quem se encontra dentro duma prisão. Com tudo isto fácil é imaginar o clima conflituoso que se vive dentro das prisões. Tal é retratado nos relatórios anuais dos estabelecimentos prisionais, onde são tipificadas infracções como atitude nocivas para com os companheiros; posse ou tráfico de dinheiro ou de objectos não consentidos; inobservância de ordens; linguagem injuriosa, insultos, ofensas ou difamação; ameaças, agressões e atitudes ofensivas para com os funcionários; detenção posse e introdução de estupefacientes; etc…, o que determina sanções disciplinares que incluem em número elevado o internamento em cela disciplinar. Por outro lado, constata-se um número elevado de recusas na concessão de saídas jurisdicionais, incluindo “precárias”, por parte do Tribunal de Execução de Penas, o que ao impedir o usufruto de algum tempo de liberdade provoca desânimo, desconforto e irritação nos reclusos. Também aqui se pode alegar que estas restrições podem estar em conflito com os normativos jurídicos internacionais (só as Nações Unidas aprovaram 22 normativos aplicáveis aos reclusos e às prisões) e, até, com o próprio Código de Execução de Penas.
A situação do campo da saúde não é das mais recomendáveis. Quando nalguns estabelecimentos prisionais os reclusos têm, em média, mais de duas consultas médicas por mês e mais de trinta actos de enfermagem mensais, tem de se concluir que algo não está nada bem. Os números elevados de VIH/sida e hepatite B e C são disto reflexo. A visita recente do Comité contra a Tortura do Conselho da Europa detectou muitos destes problemas e certamente disso fará eco no seu relatório. Pena é que estes relatórios só venham a ser divulgados daqui por alguns anos, como foi no passado, dando a desculpa aos novos governantes de que as situações já não são as mesmas e que o que foi detectado não é da sua responsabilidade. O requisito da autorização dos Estados para a divulgação dos relatórios deveria ser alterado de forma a que eles pudessem ser públicos logo após as visitas de inspecção. A recente iniciativa dum conjunto de entidades nacionais para a organização de instituições que tenham no seu objectivo a efectivação de visitas às prisões no âmbito de prevenção e detecção da tortura, ao abrigo do Protocolo Adicional à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, será um passo positivo para uma melhor cidadania e respeito no interior dos estabelecimentos prisionais. Neste sector específico das prisões, Portugal tem indicadores que se afastam daqueles que são conhecidos na União Europeia. Por exemplo, ainda há poucos anos o Alto Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa chamava a atenção para o tempo demasiado longo que os reclusos portugueses cumprem de pena relativamente aos outros países da U.E. Em Portugal o tempo médio de cumprimento de pena era de 26 meses, enquanto a média da U.E. era de 8 meses. Este factor tem de ser tido em conta quando se ouve com frequência clamar por penas mais pesadas, sem se ter em conta se tal tem algum efeito na prevenção da criminalidade, na reinserção do recluso, no ressarcimento dos danos provocados às vítimas ou na protecção geral dos bens jurídicos da sociedade. Em termos mais profundos, é cada vez maior o sentimento dos especialistas internacionais sobre a ineficácia do actual modelo do sistema prisional, que tem tido, também em Portugal, acolhimento em muitas pessoas profundamente conhecedoras da realidade das prisões. A visão não muito longínqua de Michel Foucault é cada vez mais patente nos deficientes resultados que este modelo tem para mostrar. Aliás, esta ineficácia do modelo prisional é comprovada pelos estudos dos peritos internacionais que se debruçam sobre esta matéria. Em todo o mundo existiam em 31/12/2010 mais de 10,75 milhões de pessoas presas e em detenção, sendo a maioria nos Estados Unidos da América ( 2,29 milhões) e na China (estima-se em 1,6 milhões em prisões e mais de 600.000 em centros de detenção), o que representam os valores mais altos desde sempre. Portugal detém um valor de 120 reclusos por 100.000 habitantes, enquanto Espanha detém 159, a Grécia 102, a Alemanha 85, a Dinamarca, Noruega, Suiça e Suécia entre 70 e 80, o Brasil 253, o Japão 58, tendo estes valores vindo a crescer nos últimos anos. O crescimento da população prisional tem-se verificado sem que tal aumento tenha tido correspondência nos recursos humanos das prisões (técnicos e guardas prisionais) o que degrada a qualidade de prestação de trabalho destes profissionais, sendo frequentes as situações de conflito, prepotência, negligência, desrespeito, maus tratos e inobservância dos direitos dos reclusos. Este estado de coisas tem, inclusivamente, sido denunciado por estruturas representativas dos trabalhadores das prisões mas os resultados não têm sido de molde a alterar o quadro descrito. Aliás, o recurso a trabalhadores com contratos precários para funções com um nível elevado de exigência, como são alguns dos quadros técnicos, faz antever um agravamento da situação.O actual estado da situação prisional em Portugal tem, ainda, fortes implicações no seio das famílias. A reclusão, com a privação da contribuição dos reclusos para a estabilidade afectiva e económica das famílias, vem agravar a situação destas, com as consequências imagináveis na qualidade de vida dos seus membros e a afectação que tal provoca, nomeadamente, nas crianças e no seu rendimento escolar. Os dramas que testemunhamos na situação de muitas famílias deixam-nos sempre chocados impedindo a habituação que seria de esperar com a passagem dos anos a confrontarmos-nos com estas situações. A constatação da quebra significativa dos laços familiares com as situações de prisão dum dos seus membros é uma chaga à qual não podemos ser insensíveis, até porque é um factor de agravamento da situação social da sociedade. Com taxas de reincidência superiores a 50% não podemos deixar de pensar nas prisões como instituições fomentadoras da perpetuação da criminalidade. Além de que a análise do perfil dos novos reclusos tem mostrado uma ligação forte ao passado de reclusão de familiares próximos, situando-se, também, em mais de 50% a percentagem de reclusos cujos descendentes vão parar à prisão. A não se fazer uma modificação profunda no actual estado de coisas poderemos dizer que o povoamento das prisões está garantido, o que é dramático, estarrecedor, desumano e sinónimo da falência da sociedade enquanto entidade civilizada. Os responsáveis políticos do mundo (civis, militares e religiosos) têm de ser sensibilizados para a necessidade duma alteração profunda e urgente do modelo de sociedade que aceita estas prisões, deixando de fomentar políticas em que as pessoas são seres para o tecido produtivo e implementando uma verdadeira cultura humanista baseada em pilares de ética e cidadania.Frei Bento Domingues, na sua rubrica semanal do jornal Público de 31/07/2011, deixou-nos a sua visão do momento actual, a partir da Ode Marítima de Álvaro de Campos:
“Alain Badiou considera a Ode Marítima um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo, é impossível – e contudo real, que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da discrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante.”
Esta inspiração na Ode Marítima faz-nos relembrar um dos seus trechos:
“As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!”
Um outro poeta, Dante Alighieri, na Divina Comédia, retrata o Vestíbulo do Inferno numa imagem que nos deve fazer reflectir. “O "Vestíbulo do Inferno" ou "Ante-Inferno" é onde estão os mortos que não podem ir para o céu nem para o inferno. O céu e inferno são estados onde uma escolha é permanentemente recompensada (de forma positiva ou negativa), devendo também existir um estado para quem optou pela negação da escolha, uma vez que recusar a escolha é escolher a indecisão. O Vestíbulo do Inferno é a morada dos indecisos e dos covardes que passaram a vida em cima do muro. Eles nunca quiseram assumir compromissos e tomar decisões firmes, por acharem que assim não se teriam de maçar a fazer alguma coisa. No Vestíbulo do Inferno os covardes são condenados a correr em filas atrás de uma bandeira, picados por vespas e moscões.”
Neste retrato do Inferno, Dante coloca-lhe um aviso na porta de entrada “Ó Vós que entrais abandonai toda a esperança”. Temos de impedir que tal aviso se possa aplicar aos reclusos quando entram nos estabelecimentos prisionais.
Com estas III Jornadas de Reflexão esperamos dar alguns contributos para a melhoria da paz social, tendo em conta as orientações da Doutrina Social da Igreja e a mensagem cristã do perdão, da misericórdia e da caridade, assim como o legado de S. Vicente de Paulo e Frederico Ozanam de ajuda fraterna aos mais necessitados e fragilizados. A inexistência duma pastoral penitenciária em muitas dioceses portuguesas é uma grande dificuldade, pelo que teremos de continuar a sensibilizar as autoridades eclesiásticas para a sua criação.
Não nos podemos esquecer que Jesus Cristo foi preso, torturado e crucificado, por, alegadamente, ter desafiado as leis do seu tempo e ter colocado em causa padrões de comportamento interiorizados na sociedade. Sejamos dignos do seu exemplo não esquecendo que, no pai-nosso, pedimos ao Senhor “…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…”. Será que a comunidade tem interiorizado este compromisso de perdão para com os reclusos que se encontram nas prisões? Aos responsáveis pelos destinos do mundo, que têm a responsabilidade pela existência das prisões, deveremos fazer-lhes presente a proclamação de Jesus Cristo na cruz “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”.
Porto, 26 de Junho de 2012
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Presidente da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos